À mestra com carinho
Há
alguns dias compartilhei uma foto de uma das professoras mais queridas que já
tive. E junto com ela um apelo para doação de sangue, pois havia dias que
estava internada em estado grave em um hospital em Santos. Não era sua primeira
internação. Não era a primeira vez que o estado era grave.
Minha
avó sempre disse que as pessoas morrem perto dos seus aniversários. E era
irritante quando eu checava a informação, pois ela quase sempre batia.
Inevitável meu desapontamento no dia que postei o apelo, sete de maio, e vi a data de
aniversário da Fátima Francisco: treze de maio.
Fátima
me deu aula na faculdade de jornalismo em Santos. Eu morava no Guarujá e não tinha
carro ou bicicleta. As aulas de semiótica concentradas as sextas-feiras eram
dadas por ela sem intervalo para poder liberar os alunos mais cedo. Era o que
me diziam, pois por forças de várias circunstâncias eu perdi as cinco primeiras
sextas. Uma vez estava em São Paulo. Em outra um temporal grosso me impediu de
sair. Me lembro de uma outra vez em que esperei o ônibus por mais de uma hora no ponto e esse
simplesmente não apareceu, então desisti. Não foram faltas deliberadas, foram coincidentemente
concentradas nas sextas – tal como as aulas de semiótica.
Quando
apareci, faltando uma aula para prova, senti vergonha em ser confundida com turista.
Era minha segunda faculdade e eu era uma das mais velhas da turma. Não estava
ali por obrigação. Logo na chamada quando olhou pra mim, me apontou o dedo sem
cerimônia “você nunca veio na minha
aula”. Até ensaiei um argumento, mas ela fez uma careta do tipo “nem perca seu
tempo” e prosseguiu.
No
fim da aula a abordei para pedir referências de leitura para prova. Estudei
muito. Li textos além dos que me foram recomendados. Eu precisava garantir a
média oito. Tinha bolsa de estudo e se não cumprisse a meta teria de pagar a
faculdade.
Fiz uma prova impecável. Escrevi como se não houvesse o amanhã. Ela
não passou recibo de surpresa tampouco me hostilizou quando a entreguei a prova.
Na
aula seguinte, ao distribuir as notas, mencionou três alunos que haviam ido
muito bem, e uma aluna que fizera a prova dos sonhos dela. Eu tirara dez (e com
louvor, pelo discurso). O que mais me surpreendia é que ela havia corrigido
minha prova despida de qualquer preconceito. Ela julgou a prova e não a
ausência.
Aquela
aluna relapsa fora capaz de acertar as questões, dissertar e discutir os temas
propostos. Não fui penalizada como achei que seria. Nascia ali uma admiração
mutua e respeito que tive ou tenho por poucos na vida. Ela virou minha mentora
e confidente, além de ser aquele espetáculo de professora.
Por
duas vezes fui chamada em sua sala quando ela já não me dava aulas e era
coordenadora do curso. Uma vez, por questões políticas envolvendo professores e
situações sórdidas que poucos sabiam e muitos desconfiavam. Me pedia ajuda do
tipo mobilização estudantil. Ela sempre soube que podia contar comigo. Na segunda
vez pra debater questões de rumos de sua coordenação. Pedia opinião – não por
que não soubesse o que fazer, mas porque era democrática e ouvia os alunos.
Estava entre a gente, por nós.
Voltei
a estar com ela no meu período sabático – afastamento por licença maternidade.
Ela tinha problemas com uma aluna da minha classe. Problemas graves que eu já
havia levado a ela informalmente quando, ainda grávida, frequentava a
faculdade. Ela não era coordenadora mas era nela que eu confiava.
Fui
a faculdade apenas para isso e na sua sala, carregando o Caio ainda bem
pequeno, conversamos por mais de uma hora. Ela me pedia pra voltar no semestre
seguinte e eu sabia que ainda ficaria o restante daquele ano fora. Ela temia que eu não
voltasse. Dizia pra que eu não fosse um desperdício. Sempre reforçou meu
potencial e vindo dela me renovava a confiança.
Voltei
apenas no ano seguinte. Ela já não estava mais lá. Já lutava contra a doença
que a deixava muito fraca e não tinha tempo a perder com a infinidade de
picuinhas e disputa de cargos entre docentes – que jamais estiveram aos pés
dela.
Depois
disso a vi apenas uma vez, quando tomamos um café e conversamos sobre
amenidades. Ela calma e espiritualizada. Mais forte ainda que franzina.
Trocamos muitos e-mails e na nossa ultima correspondência ainda no começo deste ano ela retomou
a palavra “desperdício” dizendo que se sentia feliz por eu não ter me tornado
um.
Há
três dias ela aniversariou. Hoje, num dia lindo de sol ameno ela será enterrada
em São Vicente. Não me queixo exatamente de um vazio, pois ela preencheu e solidificou
muito do que há em mim. É mais um lamento por saber que alguém como ela não está
mais aqui. Desejo que ela encontre o mundo que imaginava que encontraria. Místico,
energizado, colorido. Desejo que ela encontre pessoas como ela. Inteligentes,
perspicazes, justas e com fé. Não vou me entristecer pela morte, vou comemorar
a sua vida e, por que ela acreditava, com fé vou comemorar a sua passagem.
"Passa ave, passa, e ensina-me a passar" (Fernando Pessoa)
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