rainbows girls

Pequenos fragmentos de grandes pessoas

Wednesday, May 16, 2012

À mestra com carinho



Há alguns dias compartilhei uma foto de uma das professoras mais queridas que já tive. E junto com ela um apelo para doação de sangue, pois havia dias que estava internada em estado grave em um hospital em Santos. Não era sua primeira internação. Não era a primeira vez que o estado era grave.

Minha avó sempre disse que as pessoas morrem perto dos seus aniversários. E era irritante quando eu checava a informação, pois ela quase sempre batia. Inevitável meu desapontamento no dia que postei o apelo, sete de maio, e vi a data de aniversário da Fátima Francisco: treze de maio.

Fátima me deu aula na faculdade de jornalismo em Santos. Eu morava no Guarujá e não tinha carro ou bicicleta. As aulas de semiótica concentradas as sextas-feiras eram dadas por ela sem intervalo para poder liberar os alunos mais cedo. Era o que me diziam, pois por forças de várias circunstâncias eu perdi as cinco primeiras sextas. Uma vez estava em São Paulo. Em outra um temporal grosso me impediu de sair. Me lembro de uma outra vez em que esperei o ônibus por mais de uma hora no ponto e esse simplesmente não apareceu, então desisti. Não foram faltas deliberadas, foram coincidentemente concentradas nas sextas – tal como as aulas de semiótica.

Quando apareci, faltando uma aula para prova, senti vergonha em ser confundida com turista. Era minha segunda faculdade e eu era uma das mais velhas da turma. Não estava ali por obrigação. Logo na chamada quando olhou pra mim, me apontou o dedo sem cerimônia “você nunca veio na minha aula”. Até ensaiei um argumento, mas ela fez uma careta do tipo “nem perca seu tempo” e prosseguiu.

No fim da aula a abordei para pedir referências de leitura para prova. Estudei muito. Li textos além dos que me foram recomendados. Eu precisava garantir a média oito. Tinha bolsa de estudo e se não cumprisse a meta teria de pagar a faculdade.
Fiz uma prova impecável. Escrevi como se não houvesse o amanhã. Ela não passou recibo de surpresa tampouco me hostilizou quando a entreguei a prova.

Na aula seguinte, ao distribuir as notas, mencionou três alunos que haviam ido muito bem, e uma aluna que fizera a prova dos sonhos dela. Eu tirara dez (e com louvor, pelo discurso). O que mais me surpreendia é que ela havia corrigido minha prova despida de qualquer preconceito. Ela julgou a prova e não a ausência.

Aquela aluna relapsa fora capaz de acertar as questões, dissertar e discutir os temas propostos. Não fui penalizada como achei que seria. Nascia ali uma admiração mutua e respeito que tive ou tenho por poucos na vida. Ela virou minha mentora e confidente, além de ser aquele espetáculo de professora.

Por duas vezes fui chamada em sua sala quando ela já não me dava aulas e era coordenadora do curso. Uma vez, por questões políticas envolvendo professores e situações sórdidas que poucos sabiam e muitos desconfiavam. Me pedia ajuda do tipo mobilização estudantil. Ela sempre soube que podia contar comigo. Na segunda vez pra debater questões de rumos de sua coordenação. Pedia opinião – não por que não soubesse o que fazer, mas porque era democrática e ouvia os alunos. Estava entre a gente, por nós.

Voltei a estar com ela no meu período sabático – afastamento por licença maternidade. Ela tinha problemas com uma aluna da minha classe. Problemas graves que eu já havia levado a ela informalmente quando, ainda grávida, frequentava a faculdade. Ela não era coordenadora mas era nela que eu confiava.

Fui a faculdade apenas para isso e na sua sala, carregando o Caio ainda bem pequeno, conversamos por mais de uma hora. Ela me pedia pra voltar no semestre seguinte e eu sabia que ainda ficaria o restante daquele ano fora. Ela temia que eu não voltasse. Dizia pra que eu não fosse um desperdício. Sempre reforçou meu potencial e vindo dela me renovava a confiança.

Voltei apenas no ano seguinte. Ela já não estava mais lá. Já lutava contra a doença que a deixava muito fraca e não tinha tempo a perder com a infinidade de picuinhas e disputa de cargos entre docentes – que jamais estiveram aos pés dela.

Depois disso a vi apenas uma vez, quando tomamos um café e conversamos sobre amenidades. Ela calma e espiritualizada. Mais forte ainda que franzina. Trocamos muitos e-mails e na nossa ultima correspondência ainda no começo deste ano ela retomou a palavra “desperdício” dizendo que se sentia feliz por eu não ter me tornado um.

Há três dias ela aniversariou. Hoje, num dia lindo de sol ameno ela será enterrada em São Vicente. Não me queixo exatamente de um vazio, pois ela preencheu e solidificou muito do que há em mim. É mais um lamento por saber que alguém como ela não está mais aqui. Desejo que ela encontre o mundo que imaginava que encontraria. Místico, energizado, colorido. Desejo que ela encontre pessoas como ela. Inteligentes, perspicazes, justas e com fé. Não vou me entristecer pela morte, vou comemorar a sua vida e, por que ela acreditava,  com fé vou comemorar a sua passagem. 

"Passa ave, passa, e ensina-me a passar" (Fernando Pessoa)

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